Tampas difíceis
«Há alegrias do quotidiano que passam injustamente despercebidas. É o caso das tampas difíceis. Poucas coisas animam tanto o dia de um homem como uma mulher abeirar-se dele com um recipiente hermeticamente selado e perguntar: "Achas que consegues abrir isto?" São palavras que têm o poder milagroso de fazer nascer um macho alfa em doze metros quadrados de cozinha.
Eu casei-me com uma mulher de armas, portanto esse não é um pedido recorrente. Mas quando acontece, a simples formulação de tal pergunta – "achas que consegues abrir isto?" – é de modo a transformar o caco de homem que podem verificar na ilustração em apenso num autêntico Sylvester Stallone doméstico. Num piscar de olhos, empolo os bíceps, imobilizo o objecto com a mão direita, grampeio a tampa com a mão esquerda e aplico toda a minha energia na rotação do pulso.
Às vezes corre mal e tenho de ir a correr buscar um pano da loiça, desculpando-me com o facto de a superfície estar "escorregadia". Mas quando corre bem, ouvir o clique da tampa a ceder é uma entrada directa para o top ten dos pequenos prazeres da vida. Nessa altura, coloco o meu melhor sorriso, devolvo o objecto à minha excelentíssima esposa, e mesmo que ela apenas me agradeça com um "obrigado" mais ou menos indiferente, eu já ganhei o dia: "mim Tarzan, tu Jane, eu ser o mais poderoso da selva, ooooooooh-oho-oho!" [simulação do famoso grito de Johnny Weissmuller, acompanhado pelo bater dos punhos no peito].
Um homem precisa de tampas difíceis, já que a sua vida está cada vez menos fácil. Atropelados que fomos pelo discurso igualitarista do século XX, sentimo-nos inevitavelmente fracos machos. Quando eu pergunto aos meus três filhos: "Mas quem é que manda cá em casa, afinal?" Eles respondem em coro: "A mamã!". E têm toda a razão. Até porque quando me casei já sabia perfeitamente quem é que ia usar as calças – e, como é óbvio, não era eu.
Acantonado que estou no meu lugar de triste espécimen da espécie, é muito raro ter a oportunidade de voltar a sentir-me no topo da pirâmide. E, por isso, um frasco fechado na minha mão, após várias tentativas infrutíferas da minha mulher para o abrir, é uma espécie de passaporte para o passado em que um homem era um homem. Todos os momentos de felicidade masculina devem ser cultivados. Ainda que tenham apenas a duração de um clique.»
João Miguel Tavares, in Os homens precisam de mimo
Eu casei-me com uma mulher de armas, portanto esse não é um pedido recorrente. Mas quando acontece, a simples formulação de tal pergunta – "achas que consegues abrir isto?" – é de modo a transformar o caco de homem que podem verificar na ilustração em apenso num autêntico Sylvester Stallone doméstico. Num piscar de olhos, empolo os bíceps, imobilizo o objecto com a mão direita, grampeio a tampa com a mão esquerda e aplico toda a minha energia na rotação do pulso.
Às vezes corre mal e tenho de ir a correr buscar um pano da loiça, desculpando-me com o facto de a superfície estar "escorregadia". Mas quando corre bem, ouvir o clique da tampa a ceder é uma entrada directa para o top ten dos pequenos prazeres da vida. Nessa altura, coloco o meu melhor sorriso, devolvo o objecto à minha excelentíssima esposa, e mesmo que ela apenas me agradeça com um "obrigado" mais ou menos indiferente, eu já ganhei o dia: "mim Tarzan, tu Jane, eu ser o mais poderoso da selva, ooooooooh-oho-oho!" [simulação do famoso grito de Johnny Weissmuller, acompanhado pelo bater dos punhos no peito].
Um homem precisa de tampas difíceis, já que a sua vida está cada vez menos fácil. Atropelados que fomos pelo discurso igualitarista do século XX, sentimo-nos inevitavelmente fracos machos. Quando eu pergunto aos meus três filhos: "Mas quem é que manda cá em casa, afinal?" Eles respondem em coro: "A mamã!". E têm toda a razão. Até porque quando me casei já sabia perfeitamente quem é que ia usar as calças – e, como é óbvio, não era eu.
Acantonado que estou no meu lugar de triste espécimen da espécie, é muito raro ter a oportunidade de voltar a sentir-me no topo da pirâmide. E, por isso, um frasco fechado na minha mão, após várias tentativas infrutíferas da minha mulher para o abrir, é uma espécie de passaporte para o passado em que um homem era um homem. Todos os momentos de felicidade masculina devem ser cultivados. Ainda que tenham apenas a duração de um clique.»
João Miguel Tavares, in Os homens precisam de mimo
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