O dom do toque
Existem passagens do nosso dia-a-dia que nos fazem lembrar que afinal o coração ainda bate. Esta história passou-se na última semana e é afinal aquilo a que se chama acaso. Feliz porque se trata de algo que me deixou de sorriso nos lábios. O que pode não ser difícil, mas de salientar quando é genuíno e sentido.
Com a Feira ainda fechada mas a entrada da tenda bem aberta, foram muitos os que primeiro espreitaram para ver o que se passava e depois que se decidiram a aventurar numa voltinha pelo interior. Ora, tive de me dirigir às pessoas e, delicadamente, tentar explicar que a Feira ainda se encontrava fechada e que ainda não podiam fazer a visita da praxe.
Ao sair dou de caras com uma senhora velhinha que lentamente entrava na tenda. Sorrio e digo: "desculpe mas ainda não pode entrar porque a abertura da Feira é só às 18h00". "Eu também não quero ver. Já vi tudo! Mas olhe que aquela senhora ali também entrou e ainda ninguém lhe disse que tinha de sair", diz, desarmando-me por completo.
Sorrio mais uma vez e não consigo argumentar o que quer que seja. Limito-me a ouvir. A senhora prossegue. "Eu já vi tudo. Viajei quatro meses pela Europa com o meu marido e conheço tudo. Também estive em África, em Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé e Príncipe, conheço tudo". Ainda a recuperar do primeiro golpe, tento (em vão) acrescentar algumas palavras com sentido ao monólogo da senhora. "Nunca conseguimos ver tudo. Há sempre qualquer coisa ainda para ver, por muitas viagens ou sítios pelos quais passamos", acrescento sem sucesso.
A sábia senhora não desarma. "Com 87 anos acha que ainda existirá alguma coisa que me surpreenda?! Eu tenho é muitas saudades do meu marido. Morreu com a vacina da gripe. Ele não queria tomar e eu também não queria que ele tomasse. Olhe, tomou num dia, começou a sentir-se mal durante a noite e morreu no dia seguinte. E eu agora sinto-me muito sozinha. Tenho muitos amigos e amigas, mas não é a mesma coisa. Estou sozinha porque tenho os meus filhos todos para Coimbra e só tenho os meus amigos que gostam muito de mim", retorquiu perante o meu ar cada vez mais babado e sem saber o que dizer.
Continuei a usar a minha arma preferida: o sorriso. Disse-lhe qualquer coisa como "os amigos também são importantes" e voltei a remeter-me a toda a minha pequenez perante tão eloquente personagem. Foi então que constatei o sucesso que estava a fazer com a senhora, mesmo depois de ter ficado sem palavras numa tentativa (sim, apenas tentativa) de acompanhar um intruso até à porta da saída. Do alto dos 87 anos saiu um elogio na minha direcção. "Tenho mesmo muitas saudades do meu marido. Ele era assim bonito como o menino. Tal e qual. Parece que o estou a ver ao olhar para si". Se já estava completamente rendido à velhinha, com este elogio arrancado sem esforço, fiquei bem lá no alto perto dos sete metros e tal do topo da tenda. Um misto entre dar um beijo na senhora ou perguntar se teria alguma neta gira que me quisesse apresentar. A conversa terminou com perguntas sobre o que teria em exposição na Feira e qual era a minha ocupação para estar ali a tentar ordenar o que quer que fosse naquele espaço. "Ah...então o menino está bem na vida...tudo de bom e muito boa sorte para a Feira", terminou, continuando rumo à saída no seu passo lento mas seguro.
A partir dali deixei de tentar evitar a entrada de qualquer outra pessoa no recinto. Parei por breves segundos e de sorriso nos lábios absorvi todos os pequenos flashes daquele momento. Não resisti a partilhar a história. Pela forma como aconteceu, pela senhora tão sui generis, pelo que me tocou apesar da banalidade. Deliciosa a forma como nos tocam sem nos tocarem.
Com a Feira ainda fechada mas a entrada da tenda bem aberta, foram muitos os que primeiro espreitaram para ver o que se passava e depois que se decidiram a aventurar numa voltinha pelo interior. Ora, tive de me dirigir às pessoas e, delicadamente, tentar explicar que a Feira ainda se encontrava fechada e que ainda não podiam fazer a visita da praxe.
Ao sair dou de caras com uma senhora velhinha que lentamente entrava na tenda. Sorrio e digo: "desculpe mas ainda não pode entrar porque a abertura da Feira é só às 18h00". "Eu também não quero ver. Já vi tudo! Mas olhe que aquela senhora ali também entrou e ainda ninguém lhe disse que tinha de sair", diz, desarmando-me por completo.
Sorrio mais uma vez e não consigo argumentar o que quer que seja. Limito-me a ouvir. A senhora prossegue. "Eu já vi tudo. Viajei quatro meses pela Europa com o meu marido e conheço tudo. Também estive em África, em Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé e Príncipe, conheço tudo". Ainda a recuperar do primeiro golpe, tento (em vão) acrescentar algumas palavras com sentido ao monólogo da senhora. "Nunca conseguimos ver tudo. Há sempre qualquer coisa ainda para ver, por muitas viagens ou sítios pelos quais passamos", acrescento sem sucesso.
A sábia senhora não desarma. "Com 87 anos acha que ainda existirá alguma coisa que me surpreenda?! Eu tenho é muitas saudades do meu marido. Morreu com a vacina da gripe. Ele não queria tomar e eu também não queria que ele tomasse. Olhe, tomou num dia, começou a sentir-se mal durante a noite e morreu no dia seguinte. E eu agora sinto-me muito sozinha. Tenho muitos amigos e amigas, mas não é a mesma coisa. Estou sozinha porque tenho os meus filhos todos para Coimbra e só tenho os meus amigos que gostam muito de mim", retorquiu perante o meu ar cada vez mais babado e sem saber o que dizer.
Continuei a usar a minha arma preferida: o sorriso. Disse-lhe qualquer coisa como "os amigos também são importantes" e voltei a remeter-me a toda a minha pequenez perante tão eloquente personagem. Foi então que constatei o sucesso que estava a fazer com a senhora, mesmo depois de ter ficado sem palavras numa tentativa (sim, apenas tentativa) de acompanhar um intruso até à porta da saída. Do alto dos 87 anos saiu um elogio na minha direcção. "Tenho mesmo muitas saudades do meu marido. Ele era assim bonito como o menino. Tal e qual. Parece que o estou a ver ao olhar para si". Se já estava completamente rendido à velhinha, com este elogio arrancado sem esforço, fiquei bem lá no alto perto dos sete metros e tal do topo da tenda. Um misto entre dar um beijo na senhora ou perguntar se teria alguma neta gira que me quisesse apresentar. A conversa terminou com perguntas sobre o que teria em exposição na Feira e qual era a minha ocupação para estar ali a tentar ordenar o que quer que fosse naquele espaço. "Ah...então o menino está bem na vida...tudo de bom e muito boa sorte para a Feira", terminou, continuando rumo à saída no seu passo lento mas seguro.
A partir dali deixei de tentar evitar a entrada de qualquer outra pessoa no recinto. Parei por breves segundos e de sorriso nos lábios absorvi todos os pequenos flashes daquele momento. Não resisti a partilhar a história. Pela forma como aconteceu, pela senhora tão sui generis, pelo que me tocou apesar da banalidade. Deliciosa a forma como nos tocam sem nos tocarem.
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